web analytics

Siglas Poveiras – António Santos Graça – O Poveiro (4/4)

As marcas são a escrita do Poveiro.

Têm muita analogia com a escrita egípcia porque constituem imagens de objectos: Sarilho, Coice (imagem de parte da quilha de um barco) Arpão, Pé-de-Galinha, Grade, Lanchinha, Calhorda, Pena, etc.

As marcas estão nas redes, nas velas, nos mastros, nos paus de varar, nos lemes, nos bartedoiros, nos boiréis, nas talas, nas facas da cortiça, nas mesas, nas cadeiras, em todos os objectos que lhe pertençam, quer no mar, na praia ou em casa. A marca num objecto equivale ao registo de propriedade. O Poveiro lê essas marcas com a mesma facilidade com que nós procedemos à leitura do alfabeto.

Não são marcas organizadas ao capricho de cada um, mas antes simbolismos ou brasões de famílias, que vão ficando por herança de pais para filhos e que só os herdeiros podem usar.

Casos curiosos encontramos ao colher as nossas notas sobre as marcas, sobretudo quando, ao organizar a árvore de uma família, encontrávamos a velha tradição quebrada, isto é, quando verificávamos que na descendência não era seguida a fórmula usada para distinção da marca pela comunidade. Estes factos, curiosos e interessantes para esse estudo, ficam mais adiante anotados. (…)

(…) Estes são, digamos, os brasões de família.

Vejamos, agora, a forma engenhosa como essa marca serve de escrita a todos os membros duma família, com perfeito conhecimento de toda a comunidade.

Ao contrário do que sucede aos filhos de algo, o mais velho dos quais é que é o herdeiro do brasão.
Ver a gravura – Regras usadas pelos descendentes.

As grades, estrelas e cruzes servem também de brasões quando por si só constituem a marca, ou quand (…)
O chefe usa a marca brasão ; o filho mais velho põe-lhe ao lado um pique; o outro a seguir, dois piques; o outro três piques e assim sucessivamente até ao filho mais novo, que volta a usar a marca de família, porque é o seu legítimo herdeiro1. Estes piques são agrupados de formas diferentes: umas vezes, são alinhados; outras vezes, formam cruzes e estrelas; outras vezes, grades, conforme o número de piques2. Para se conhecer a que filho pertence a marca que nos apresentam, basta contar-se os piques que estão alinhados ou que formam as estrelas, grades ou cruzes3 que rodeiam o tronco da marca familiar. E sendo isto a fórmula corrente, tradicional, fácil é, portanto, a quem conhece o tronco da marca saber a quem pertence o objecto ou apresto marítimo onde a mesma se encontre.

Fácil nos foi chegar a esta conclusão nos estudos que fizemos, porque, invariavelmente, na organização das árvores familiares encontrávamos a linha recta desta tradição poveira.
(…)

Para saber mais… ler “O Poveiro” de António Santos Graça.

Siglas Poveiras: a misteriosa herança dos Vikings na Póvoa de Varzim (3/4)

Estão presentes em vários locais da Póvoa do Varzim e constituem uma incrível herança dos Vikings. Conheça a história e a origem das siglas poveiras.

Já alguma vez ouviu falar das siglas poveiras? Tratam-se de uma proto-escrita primitiva, um sistema de comunicação visual que foi usado durante muitos séculos na Póvoa do Varzim, especialmente nas classes piscatórias. Eram escritas sobre madeira, usando-se uma navalha para fazer a inscrição, mas podiam ser igualmente pintadas em barcos ou barracos de praia. Foram usados para recordar coisas, no passado, e, apesar de ser conhecida como “escrita” poveira, não constituía um alfabeto em si.

Eram usadas porque muitos pescadores desconheciam o alfabeto latino, e assim as runas adquiriram bastante utilidade. Mas como? Por exemplo, eram usadas pelos vendedores, no seu livro de conta fiada, e lidas e reconhecidas como nós reconhecemos um nome escrito no nosso alfabeto. Por sua vez, o valor em dinheiro era simbolizado por rodelas e riscos, que designavam os vinténs e os tostões, e que eram desenhados após o nome do indivíduo.

Outro uso comum era no peixe: o peixe apanhado na rede pertencia ao seu proprietário, e por isso os peixes eram marcados com sigla e entregues às mulheres dos donos da rede. Estes golpes eram feitos em diversos pontos do peixe. A tripulação de cada barco tinha igualmente uma sigla, usada por todos os tripulantes. Caso alguém mudasse de barco, mudaria também a sigla e passaria a usar a da nova embarcação.

As siglas entraram em uso na Póvoa de Varzim graças à colonização viking, entre os séculos IX e X, tendo permanecido na comunidade graças à endogamia e à proteção cultural por parte da população. Dessa forma, manteve-se presente esta herança da passagem dos vikings pelas nossas terras.

Aliás, as marcas poveiras foram usadas como brasão ou assinatura familiar, de modo a assinalar os seus pertences, um costume que também existiu na Escandinávia, onde estas marcas eram chamadas de “bomärken“.

As siglas, enquanto brasões de família hereditários, são transmitidos por herança, de pais para filhos, podendo apenas ser usadas pelos herdeiros. O pai passava a sua sigla para o filho mais novo, e aos outros filhos era dada essa sigla, mas com traços, chamados “pique”.

Portanto, o filho mais velho tinha um pique, o seguinte tinha dois, e assim por diante, até chegar ao filho mais novo, que não teria nenhum pique, herdando a mesma sigla que o pai. Isto porque, na tradição poveira, o herdeiro da família é o filho mais novo (algo que acontecia na antiga Bretanha e Dinamarca), porque seria esse filho o responsável por tomar conta dos pais quando estes se tornassem idosos.

Estas siglas poveiras foram estudadas, pela primeira vez, por António dos Santos Graça, no seu livro “Epopeia dos Humildes”, de 1952, que tem centenas de siglas e a história e tragédia marítimas poveiras. As siglas ainda podem ser encontradas em templos religiosos, não só na cidade e no concelho, mas também no noroeste peninsular, em especial no Minho e na Galiza.

Os templos religiosos são, portanto, um bom local de estudo das siglas, já que os poveiros costumavam gravar, nas portas de capelas ou montes, a sua marca, como um documento da sua passagem por ali. Isto pode ser visto em locais como a Nossa Senhora da Bonança, em Esposende, em Santa Trega (Santa Tecla) ou no monte junto a La Guardia, em Espanha. Outros locais onde se podem ver siglas poveiras são os templos da Senhora da Abadia, de São Bento da Porta Aberta, de São Torcato, e da Senhora da Guia.

No concelho, as siglas são encontradas em especial na Igreja Matriz (desde 1757), mas também na Igreja da Lapa e na Capela de Santa Cruz, em Balasar. Um objeto que seria de grande importância para o estudo destas siglas, a mesa da sacristia da antiga Igreja da Misericórdia, guardava milhares de siglas, uma vez que os poveiros as escreviam quando se casavam, como forma de registar o evento.

Infelizmente, esta mesa foi destruída quando a igreja foi demolida, perdendo-se assim uma fonte pormenorizada que poderia servir para melhor compreender estas marcas.

A 23 de setembro de 1991, inaugura-se, durante as festividades de Santa Trega, uma escultura que honra as siglas poveiras, lembrando a antiga porta, coberta de siglas, da capela de Santa Trega.

Com esta inauguração, veio da Póvoa de Varzim uma expedição, a bordo da lancha “Fé em Deus”, cujos pescadores subiram ao Trega e oraram na ermida dedicada à padroeira do Monte, seguindo antigos rituais, em que os pescadores iam ao monte rezar à santa para mudar os ventos, de maneira a poderem regressar a casa.

Isto demonstra um orgulho e uma vontade da população de manter vivas as tradições ancestrais, e a verdade é que, apesar de já não terem o uso de outrora, as siglas ainda são usadas em barracões e nos pertences de algumas famílias típicas. A Casa dos Pescadores da Póvoa de Varzim também aceita as siglas como forma correta de assinatura.

Infelizmente, não há uma política de salvaguarda desta preciosa herança por parte do município, e, com a reestruturação dos barracões, muitas das siglas dos concessionários acabaram por desaparecer das praias.

Fonte: Vortexmag, consultado a 22 de dezembro de 2022.

Siglas Poveiras – Pequena resenha histórica (2/4)

Na tradição poveira, o herdeiro principal da família era o filho mais novo, pois era esperado ser esse o filho a tomar conta dos pais quando esses se tornassem idosos. Por esse motivo, as siglas originais passavam do pai para o filho mais novo, o herdeiro. Aos restantes filhos era atribuída a mesma sigla acrescida de traços, chamados de “pique”. O número de traços correspondia, então, à ordem de nascença dos filhos. Portanto, o filho mais velho teria um traço, o segundo dois e por aí em diante, até chegar ao filho mais novo que não teria nenhum traço, ficando assim com o mesmo símbolo que o seu pai.

Com o aumento da alfabetização e a modernização das técnicas e instrumentos de pesca, as siglas caíram em desuso nas primeiras décadas do século XX. Seguem presentes como identidade da comunidade piscatória e ostentadas, muitas vezes, como emblemas de famílias, mesmo que se tenham quebrado as ligações com a pesca.

Como referência cultural da Póvoa de Varzim tem enorme apelo para ser aplicada em peças originais e contemporâneas de design, artesanato e peças publicitárias. Recentemente, um novo modelo de placa toponímica para algumas ruas da cidade foi adotado, referenciando-se à sigla. Com esta iniciativa, a Câmara Municipal promove a preservação e valorização da herança linguística e cultural poveira, de uma forma original e única.

O Museu Municipal e a Biblioteca estão, permanentemente, trabalhando com a memória e a investigação sobre as siglas poveiras. O tema desperta grande interesse de outras comunidades com tradições marítimas, tendo sido objeto de exposição de itinerância mundial e de estudiosos nos campos da história da arte e da semiótica.

Fonte:
Póvoa d Varzim – Cidade de Literatura, , consultado a 22 de dezembro de 2022.
Museu Nogueira da Silva, consultado a 22 de dezembro de 2022.